Em seu estudo sobre a influência dos mitos escatológicos na ciência, Marcelo Gleiser (2001) afirma que o homem tem certa fixação com a ideia do fim do mundo, advinda da consciência de sua finitude na terra. “A morte faz com que nos apeguemos à vida com todas as nossas forças, inspirando nossa constante busca por algo que transcenda essa passagem de tempo” (Gleiser, 2001, p. 15). Nesta busca, o homem procurou entender como o fim do mundo ocorreria, como um colapso poderia gerar o fim de toda a vida humana e como a própria humanidade sobreviveria a isso.
Tal fixação do homem está ligada à difusão de mitos de fim dos tempos, narrativas de um imaginário que, como bem explícita Gleiser, preveem como se sucederá o fim da vida da humanidade na terra e como será sua existência depois. São histórias que, por mais catastróficas que pareçam, oferecem conforto ao realçar um sentimento de esperança pautado em um final que comumente leva à salvação de um povo.
Essas diversas narrativas escatológicas são parte tão profunda da sociedade humana que para Vieira (2018) elas são capazes de formar uma “noosfera apocalíptica” (Vieira, 2017, p. 16). Tendo como base o conceito de noosfera proposto por Edgar Morin (2011), o autor acredita que os mitos escatológicos formam um ecossistema próprio no “qual relatos escatológicos influenciam o pensamento humano e conservam um medo social em relação ao fim” (Vieira, 2017, p. 17). Esses relatos são tão difundidos que influenciam produções midiáticas atuais, como o jogo digital “The Last of Us” (2013) citado pelo autor.
Graças a essas constatações, não é surpreendente ver que em 2019 o serviço de streaming Prime Video tenha lançado o seriado “Good Omens”, inspirado em um livro de mesmo nome, que reinterpreta justamente um famoso mito escatológico: o Apocalipse bíblico. O seriado apresenta diversas imagens comuns às narrativas de fim dos tempos, imagens que Gleiser chama de “arquétipos do fim” (Gleiser, 2001 p. 18) tamanha sua recorrência nestas narrativas de fim dos tempos. Entretanto, o seriado é capaz de subverter alguns desses arquétipos do fim, com um deles chamando a atenção tamanha sua subversão: a imagem do salvador do fim do mundo.
O ANJO, O DEMÔNIO E O ANTICRISTO
“Good Omens” conta a história de um anjo chamado Aziraphale, e um demônio conhecido como Crowley. Tendo acompanhado a história humana desde a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, os dois resolvem tentar evitar o Armagedom, ou seja, o Apocalipse relatado na bíblia.
Para isso, a dupla decide cuidar para que o anticristo, filho do próprio Diabo na terra, não ascenda ao poder ao completar 11 anos e reúna os quatro cavaleiros do Apocalipse. O problema surge quando os dois confundem o anticristo com um garoto comum no começo da história, levando-os a uma busca pelo anticristo verdadeiro no decorrer da narrativa para assim evitar o fim do mundo.

Crowley e Aziraphale em “Good Omens” (2019)
A narrativa em si está cheia dos arquétipos do fim propostos por Gleiser (2001), como a imagem de um profeta que narra os acontecimentos do fim dos tempos. Se a bíblia apresenta o apóstolo João como o profeta de todo o fim, a série oferece a mesma imagem na personagem Agnes Nutter, uma bruxa que escreveu um livro com profecias precisas do futuro da humanidade.
Imagens de eventos catastróficos relacionados a desastres naturais também são comuns no Apocalipse bíblico. Na bíblia, é possível ler: “E as estrelas caíram sobre a terra, como quando a figueira lança em si os seus figos verdes, abalados por um vento forte (Bíblia, Apocalipse, 6, 13). De forma similar, uma catástrofe natural como um grande tornado atinge uma cidade no momento em que o anticristo toma consciência de seus poderes.
Há, entretanto, dois arquétipos propostos por Gleiser que são aparentemente antagônicos, mas que se unificam em uma só personificação na série: a imagem do próprio anticristo e do salvador do fim do mundo.
No Apocalipse bíblico, o anticristo surge como uma figura manipuladora, que acaba conquistando os homens e corrompendo-os, fazendo-os se opor a Deus. De fato, o apóstolo narra o seguinte em relação à chega do anticristo no mundo: “E eu pus-me sobre a areia do mar, e vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, dez diademas, e sobre suas cabeças, um nome de blasfêmia” (Bíblia, Apocalipse, 13, 1).
No folclore medieval, essa figura escatológica costuma ser confundida com a própria imagem do Diabo cristão, que também é assimilado a outros seres, tais como “os gigantes, os dragões, os fantasmas, os monstros, os animais humanizados e as ‘pessoas pequenas’” (Russel, p. 60, apud Faria, 2016, p. 111). Neste contexto, o Diabo é visto como um oposto ao Deus bondoso dos cristãos. Como bem expõem Faria (2016), o Diabo (ou anticristo) seria a forma encontrada pela própria igreja de oferecer uma dualidade entre o bem e o mal aos seus fiéis, de modo que muitas vezes o Diabo aparece manipulando homens e mulheres, do mesmo modo como o anticristo fará no Apocalipse. Essa figura também é muitas vezes representada na arte medieval de forma bestial, com garras, chifres e asas animalescas, algo muito similar ao descrito por João na bíblia.
Em “Good Omens”, essa imagem animalesca e maléfica do anticristo é abandonada. A figura é apresentada como Adam, um menino de apenas 11 anos que vive em uma cidadezinha bucólica do Reino Unido e junto de seus amigos, busca viver diversas aventuras e até mesmo ajuda pessoas em necessidade. Adam jamais é mostrado como um personagem mal, e ainda que no momento em que desperta seus poderes ele realize atitudes questionáveis, ele se recusa ajudar os 4 cavaleiros do apocalipse (a Morte, a Fome, a Poluição e a Guerra) a trazerem o fim do mundo. De fato, será a recusa de Adam em aceitar seu lado “maligno” que salvará o mundo e o fará assumir a imagem de “salvador” do fim dos tempos citada por Gleiser (2001).

Adam, o anticristo de “Good Omens”
COMO O FILHO DO DIABO SALVOU O MUNDO
Durante os acontecimentos que deveriam dar início ao fim do mundo, Adam e seus amigos enfrentam os 4 cavaleiros do Apocalipse e os derrotam com suas ideias e esperanças. Quando Aziraphale e Crowley notam as boas intenções de Adam, eles aconselham o garoto a enfrentar Satã (que aqui aparece em uma forma bestial), pois ele está vindo à Terra para destruir a humanidade. Neste momento, Adam recusa seu pai, recusa estar ao seu lado e assim, acaba por banir Satã e salvar todo o mundo do fim eterno.
Tal recusa de Adam em aceitar é uma recusa ao que Durand (2012) chamaria de queda moral, uma queda que leva o homem a abraçar seus pecados e instintos assassinos. Interessante notar que essa queda está relacionada ao imaginário do tempo, pois para o autor, há uma angústia do homem em relação ao tempo, um temor relacionado à finitude temporal que leva à morte.
A queda não é uma imagem avessa ao imaginário do Apocalipse. Durand cita que “em certos apocalipses apócrifos a queda é confundida com a ‘possessão’ pelo mal” (Durand, 2012, p. 114). Essa crença diz muito sobre a imagem de Adam na série. Ele recusa a todo momento assumir seu posto como anticristo, ou seja, recusa essa possessão pelo mal.
A recusa da queda leva Adam a se torna um herói, uma figura que combate as trevas, segundo Durand. Entretanto, Adam também recusa esse posto heroico. Se colocando apenas como um ser humano comum. Desse modo, mesmo se tornando de fato um herói, Adam não tem uma ascensão heroica e permanece em um caminho de aceitação de sua realidade, mantendo-se em sua cidadezinha ao lado de seus amigos comuns.

Adam recebe conselhos de Aziraphale e Crowley em “Good Omens”
CONCLUSÃO
Em “Good Omens” a imagem do anticristo e do salvador do Apocalipse é ressignificado. Adam, o anticristo do seriado, não é uma figura má e bestial como o imaginário cristão. O personagem é herói, lutando contra uma queda moral imposta por seu pai, mas ao mesmo tempo recusando qualquer tipo de ascensão que o levaria a se tornar um herói.
Adam é um anticristo singular, que foi capaz de impedir a realização do fim dos tempos. Dessa forma, ele assume o posto de salvador e oferece esperança para aqueles que estão ao seu redor, do mesmo modo como as figuras salvadoras dos mitos escatológicos
Se para Gleiser (2001) o arquétipo do salvador do fim dos tempos no mito bíblico é personificado pela figura de Jesus, que renasce para salvar os fiéis na Terra, em “Good Omens” Adam é quem assume tal papel, salvando o mundo como um todo ao enfrentar seu pai.
BIBLIOGRAFIA
BÍBLIA. N. T. Apocalipse. In: Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida, Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1998. p. 314-334.
DURAND, G. Estruturas Antropológicas do Imaginário: introdução à arquetipologia geral. Tradução de Hélder Godinho. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
FARIA, C. A. T. Onde Reina a Escuridão – A concepção do Diabo no imaginário medieval e sua construção visual. Revista Trilhas da História, Três Lagoas, v. 6, n. 11, p. 106-119, 2016.
GLEISER, M. O Fim da Terra e do Céu: O apocalipse na ciência e na religião. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MORIN, E. O Método 4: as ideias: o habitat, a vida, costumes, organização. Tradução de Juremir Machado da Silva. 6ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.
VIEIRA, P. H. O. O Combate de Chronos: O imaginário dos mitos de apocalipse no ambiente dos videogames. 2017. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.