Os habitantes de Tóquio andam de um lado para o outro e realizam seus afazeres habituais sem suspeitar que, sobre os céus, um grupo de invasores malignos pretende dominar toda a cidade e depois a Terra. Entretanto, naquele mesmo dia, uma jovem estudante colegial recebe poderes de uma fada para se tornar uma poderosa heroína e proteger toda a Terra dos invasores malignos.
O parágrafo acima não diz respeito a nenhuma história específica, mas poderia muito bem ser a premissa de um anime mahou shoujo ou “garota mágica” na tradução para o português. Trata-se de um gênero narrativo das séries animadas japonesas “estrelado por uma heroína dotada de habilidades que poderiam ser descritas como ‘extraordinárias’ e que segue lutando por justiça em meio a um mundo relativamente comum”, como bem descreve Russell (2015, p. 5, tradução nossa). A autora ainda destaca como esse tipo de personagem se tornou altamente popular nas produções animadas japonesas desde seu aparecimento em 1960 e uma representação de “poder feminino” nessas produções.
O exemplo primário de uma produção do gênero, aponta Drazen (2014) é o anime Sailor Moon (1992), série animada produzida pela Toei Animation, estúdio conhecido por ter desenvolvido vários outros animes mahou shoujo. Com cinco temporadas e uma narrativa fundamentada em torno de diversos elementos das histórias de garotas mágicas, Sailor Moon alcançou prestígio mundial, mas sua fama não a tornou a produção de garotas mágicas de maior sucesso da Toei.
Como expõe Hartzheim (2016), quem recebe o título que “mais longa e popular franquia de anime de garotas mágicas da Toei” (ibid, p. 1065) é Pretty Cure, abreviada como Precure, franquia que teve início em 2004 com a série Futari wa Pretty Cure. Desde sua estreia nas televisões japonesas, Precure acumulou 17 temporadas, com a maioria delas apresentando novas heroínas com poderes mágicos a cada ano.
Um estudo que visa analisar a construção do imaginário das heroínas de animes de garota mágica pode dessa forma utilizar como objetos de pesquisa o anime Sailor Moon e a franquia Precure para identificar imagens de significativa importância para a narrativa dessas obras. Entretanto, no caso de Pretty Cure, é necessário realizar um recorte e por isso será realizada uma análise mais detalhada com foco em Healin’ Good Pretty Cure (2020), a 17ª temporada da franquia e mais recente produção das heroínas de Precure.
Desse modo, será possível analisar não apenas aspectos narrativos dessas obras, como verificar quais imagens mudaram e quais continuaram cristalizadas nos animes de garotas mágicas ao longo do tempo, pois se têm como objetos de pesquisa um anime de 1992 (Sailor Moon) em contraponto com outro mais atual (Healin’ Good Pretty Cure). Para fins de melhor comunicação, também será adotado o termo Precure para se referir somente à franquia Pretty Cure como um todo, e o termo Healin’ Good para se referir ao anime de 2020.
O INÍCIO DA MAGIA
Drazen (2014) credita o anime Sally, the Witch (1966) como a primeira produção do gênero garota mágica, uma afirmação que acaba sendo corroborada por Sugawa-Shimada (apud, Russell, 2015), autor que ainda ressalta que tal produção oriental teria sido influenciada por duas obras ocidentais: o filme Mary Poppins (1964) e o seriado A Feiticeira (1964), produções que mostravam, cada uma ao seu modo, uma personagem feminina com poderes mágicos, assim como acontece nos animes mahou shojo.
De acordo com Drazen (2014), é característica geral dessas histórias que elas sejam protagonizadas por garotas adolescentes que ganham poderes mágicos e possuem identidades secretas no momento de combate ao crime. O autor também nota que, mesmo com sua origem datando dos anos 60, os animes de garotas mágicas só conseguiriam alcançar sucesso mundial de fato anos mais tarde, quando Sailor Moon foi exportado para o ocidente e conquistou fãs ao redor de todo o globo. Para Drazen, o segredo do sucesso do anime foi o “balanceamento perfeito entre romance e ação, muitas vezes utilizando do humor como ferramenta de união entre essas duas metades tão distintas” (ibid, p. 279, tradução nossa).
Sailor Moon foi inspirado no mangá de homônimo da escritora Naoko Takeuchi e segue a história de Usagi, uma menina colegial que recebe poderes mágicos quando salva uma gata preta com um estranho símbolo de lua crescente na testa. Capaz de se transformar em Sailor Moon, uma heroína com os poderes da Lua, Usagi precisa enfrentar invasores extraterrestre e salvar o mundo ao lado de outras heroínas que receberam poderes referentes aos planetas do Sistema Solar. A série animada deu origem a 3 longas –metragens e anos mais tarde a Toei Animation produziu uma nova versão da história sob o título de Sailor Moon Crystal (2014).
Após a finalização de Sailor Moon em 1997, a Toei Animation continuou apostando em animes de garotas mágicas. Sua produção seguinte do gênero foi Ojamajo Doremi (1999) e segundo Hartzheim (2016), foi mesclando os elementos de Sailor Moon e Ojamajo Doremi que a Toei deu origem a Futari wa Pretty Cure, o primeiro anime da franquia Precure que mostrava duas garotas adolescentes ganhando superpoderes mágicos e se tornando heroínas chamadas “Pretty Cure” para enfrentar forças das trevas. O autor destaca que a Toei criou com a franquia uma fórmula que poderia ser replicada ao longo de anos, com algumas pequenas modificações como o número de heroínas e a temática.
Dessa forma, a cada ano a Toei tem desenvolvido uma nova série de Precure com novas heroínas em torno de um conceito diferente: contos de fadas, bruxas e magia, princesas, astronomia, entre outros assuntos já se tornaram temas de alguma temporada de Precure. Em Healin’ Good Pretty Cure, temporada mais atual da franquia, o conceito principal gira em torno da proteção da natureza. Na história, um trio de garotas colegiais (Nodoka, Chiyu e Hinata) recebe poderes de animais mágicos para derrotar um grupo de vilões conhecidos como Patógenos, cujo o objetivo é adoecer o planeta e acabar com a vida humana.
Não apenas por serem produzidas pelo mesmo estúdio, mas também por estarem pautados em uma fórmula já consagrada dos animes de garota mágica, Sailor Moon e Healin’ Good acabam se tornando bons exemplos de narrativas desse gênero e de como o imaginário desses animes é formado.
GUIADAS PELA EMOÇÃO
Para Russell (2015), a estrutura narrativa das histórias de garotas mágicas é muito similar à estrutura da Jornada do Herói proposta por Joseph Campbell. Entretanto, a autora destaca que mesmo o monomito de Campbell não engloba elementos fundamentais das histórias das heroínas mahou shoujo, como a relevância das emoções de suas personagens:
[…] narrativas shoujo [aquelas focadas em um público feminino jovem e adolescente] são de natureza emocional e pessoal. Ou seja, a narrativa é conduzida pelas emoções interiores das personagens, principalmente da protagonista. O autor [da história de garotas mágicas] dá tanta atenção ao evento – nesse caso, as atitudes de bravura da heroína – quanto ele dá às reações da heroína a esses feitos. Portanto, se o monomito de Campbell consiste nos feitos corajosos dos heróis [masculinos] e nas batalhas que ele deve enfrentar, é plausível que uma heroína use traços considerados femininos para enfrentar adversidades. Devido à natureza emocional da narrativa shoujo, é exatamente isso que a heroína mágica faz da maneira mais visual possível. Em vez de subjugar um inimigo pela força, ela pode argumentar com ele, oferecendo bondade e simpatia. (ibid, p. 25 – 26, tradução nossa)
A importância de tal elemento é ressaltada no estudo de Fernandes e Santilli (2017) em torno do anime de garota mágica Sakura Card Captors (1998). Os autores notam como a heroína da história consegue superar desafios muitas vezes sem a necessidade de embates físicos e que o real foco da narrativa é a expressão de emoções e afeto por parte dos personagens. Tais personagens criam laços de amor entre si pelo modo como se expressam, no que os autores chamam de vínculos amorosos.
Em Sailor Moon, o primeiro exemplar de um vínculo amoroso pode ser notado na relação entre a protagonista Usagi e seu namorado, Mamoru. Como bem destacado por Russell (2015), é comum que as histórias de garotas mágicas mostrem a protagonista explorando o amor pela primeira vez. Em Sailor Moon, esse amor de Usagi por Mamoru guia boa parte da narrativa: muitas vezes os vilões utilizam o amor da heroína por seu namorado como ferramenta para atacá-la, e ainda que Mamoru lute ao lado de Usagi como o heroico Tuxedo Mask, é comum que ele acabe sendo sequestrado ou ferido e a heroína precise salvá-lo.
Entretanto, Russell também concorda que as relações românticas entre heroínas e seus pares não costumam ser o foco dessas histórias, “ao invés disso, a amizade – especialmente da heroína com suas colegas de equipe – é a prioridade” (íbis, p. 49). Sailor Moon mostra isso ao longo de todos os seus arcos: as relações entre as Sailors Senshi (nome dado às guerreiras da história) vão se aprofundando e quando no último arco da história as companheiras de Usagi morrem, é o amor que ela sente por suas amigas que a motiva a ter forças para enfrentar a vilã final da história e salvar a Terra.
Healin’ Good não apresenta um subtrama romântica como Sailor Moon. Desse modo, os vínculos amorosos se manifestarão completamente através da relação de amizade do trio protagonista. Isso é notável no décimo terceiro episódio da temporada, quando, após uma luta complicada contra um novo vilão, Hinata fica em dúvida sobre continuar ou não sua vida como heroína. Para piorar, a jovem se sente incapaz em meio à sua família, uma vez que seus irmãos possuem dons como culinária e alto conhecimento sobre animais, enquanto Hinata acredita que não é boa em nada do que faz.
Notando a baixa autoestima da colega, Nodoka não hesita em lembrá-la de suas qualidades e como ela se sente feliz em tê-la como amiga, um gesto simples, mas cheio de amor que faz com que Hinata recupere a confiança em si mesma e esqueça a ideia de deixar de ser uma heroína. Ao final, as três heroínas Precures unem seus poderes para derrotar o vilão que infectou a cidade naquele episódio.
Para Drazen (2014), esse modo como essas heroínas resolvem seus conflitos, por mais complexos que sejam, geralmente através de uma palavra ou atitude simples focada no amor e amizade, as aproximam do conceito japonês de uma pessoa yasashii. Segundo, Cavallaro (2009), o termo yasashii significa “calmo, amável, generoso, sensível” (ibid, p. 12, tradução nossa) e narrativas shoujo comumente costumam apresentar protagonistas femininas que se enquadram nessa persona.
Embora o termo yasashii possa designar tanto um homem quanto uma mulher, ele encontra seu referente no imaginário ocidental na imagem da Grande Mãe citada por Durand (2012). Tal imagem diz respeito a figuras femininas valorizadas pelo imaginário, como deusas, fadas e matriarcas amáveis e generosas que protegem heróis, filhos e povos. A deusa Vênus, por exemplo, é citada pelo autor como protetora dos marinheiros na Itália.
Do mesmo modo que os mitos que configuram a imagem da Grande Mãe, as protagonistas dos animes de garotas mágicas costumam tomar uma posição protetora e amável perante seus amigos, familiares, amantes e claro, em relação à Terra que defendem. Entretanto, além de protetoras, elas são heroínas, possuem suas próprias armas e enfrentam monstros terríveis.
As garotas mágicas transitam entre o imaginário da Grande Mãe e a imagem dos valorosos heróis ascensionais descritos por Durand, pois protegem e cuidam, mas também possuem potência e, por vezes, agressividade para enfrentar seus inimigos. Tratam-se de heroínas que não são passivas e que “lutam ativamente por suas paixões enquanto atravessam desafios entre batalhas extraordinários e suas vidas comuns” (Russell, 2015, p. 5, tradução nossa).
PURIFICAÇÃO DO MAL
Outro elemento importante para compreender o imaginário dos animes de garotas mágicas são seus vilões. Ao se voltar para Sailor Moon, Drazen (2014) se atenta para o fato de que, enquanto alguns desses vilões são monstros, outros são mais complexos e apresentam emoções tão humanas quanto as heroínas do anime. Por mais maléficos que possam ser algumas vezes, eles ainda exibem emoções não vistas em vilões de outras narrativas com super-heróis ocidentais. Brandão e Leoni (2006), em sua análise mais específica sobre o primeiro arco do mangá de Sailor Moon, citam que até mesmo as ações malignas dos vilões da história da heroína são movidas pelo sentimento humano de suas paixões e anseios.
Os vilões de Sailor Moon se aproximam bastante das criaturas obscuras que constituem a constelação de imagens nictomórficas do imaginário de Durand (2012), mas enquanto essas criaturas apenas causam medo e terror, os vilões da história da heroína da Lua não se limitam a isso. A humanidade desses antagonistas também causa outra emoção: compaixão, seja por parte do espectador, ou por parte das heroínas. Justamente é a expressão dos sentimentos desses antagonistas que faz com que muitas vezes, como mostra Drazen (2014), eles não sejam mortos pelas heroínas do anime e possam se redimir do mal que fizeram.
Em alguns casos, essa redenção ocorre pela própria evolução do antagonista e sua história pessoal, mas não é incomum que em Sailor Moon os antagonistas sejam redimidos através da purificação de sua maldade. É o que ocorre, por exemplo, com As Quatro Irmãs da Maldade na segunda temporada da animação, que acabam sendo purificadas pelo poder de Sailor Moon e assim ganham a chance de viverem vidas comuns como humanas, longe de todas as maldades que fizeram. Até mesmo Sailor Galáxia, a grande vilã do último arco do anime responsável pela morte de diversos personagens, recebe a chance de redenção quando é purificada pelos poderes da protagonista.
Até seu décimo oitavo episódio, Healin’ Good não apresentou nenhum vilão que merecesse redenção na narrativa, mas não é como se o imaginário ligado a essa atitude estivesse ausente da série. Todos os episódios do anime giram em torno de algum antagonista que infecta a Terra com seu poder maligno e faz com que o meio ambiente fique doente. A tarefa das heroínas Precure acaba sendo justamente a de purificar a Terra, de modo que todo o imaginário da purificação continua presente nas narrativas desse anime.
Além disso, vale ressaltar que outras temporadas de Precure já chegaram a apresentar vilões que foram redimidos ou purificados, como Suite Pretty Cure (2011), Go! Princess Precure (2015) e Kirakira Pretty Cure a la Mode (2017).
Compreender os vilões dessas histórias é uma forma de entender um valor importante do imaginário das garotas mágicas: elas são símbolos de esperança. Como expõe Russell (2015), a carga emocional das narrativas desses animes oferecem mensagens cheias de iluminação e esperança, de modo que suas heroínas também viram imagens desses valores.
Trata-se de uma imagem facilmente assimilável, não somente pelo público oriental, mas também pelo ocidental, o que explica a popularidade desse imaginário: o desejo de esperança é compartilhável por todos, em maior ou menor grau, tanto pelo público feminino, quanto pelo público masculino, pois como citam Brandão e Leoni (2006), essas narrativas costumam se adaptar ao gosto dos meninos.
Entretanto, esperança não surge apenas no momento de derrotar um monstro, ela se manifesta na possibilidade de expressão de emoções, de poder se guiar por vínculos amorosos e permitir que a redenção e a purificação existam. Por isso garotas mágicas são imagens tão populares e acabam por pertencer a um imaginário global, não limitado por linhas demográficas.
CONCLUSÃO
Ao trabalhar em torno de heroínas guiadas pela emoção e que permitem a redenção, a imagem das garotas mágicas acaba sendo envolta por uma carga emocional que confere a essas heroínas um simbolismo de iluminação e esperança, uma vez que elas não apenas eliminam o mal, mas permitem a redenção.
Esse imaginário de esperança é assimilável a pessoas do mundo todo e será por isso que veremos até mesmo narrativas ocidentais que utilizam diversos elementos dos animes de garotas mágicas em sua estrutura: O Clube da Winx (2004), W.I.T.C.H. (2004) e mais recentemente Miraculous: As Aventuras de Ladybug (2015) são alguns exemplos de produções ocidentais com estruturas que se assemelham aos seriados japoneses de garotas mágicas.
O imaginário das garotas mágicas atravessa barreiras geográficas e de gênero e sua mensagem de esperança se difunde a ponto de continuar inspirando histórias de heroínas guiadas pelos seus vínculos amorosos até hoje.
BIBLIOGRAFIA
BRANDÃO, T. L.; LEONI, T. C. Sailor Moon: Uma análise semiótica de manga. Estudos Semióticos, São Paulo, 2006. Disponível em: www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es
Acessado em: 25 de julho de 2020.
CAVALLARO, D. The Art of Studio Gainax: Experimentation, style and inovation at the leading edge of the anime: Carolina do Norte, McFarland & Company, Inc., Publishers, 2009.
DRAZEN, P. Anime explosion: The What? Why? & Wow! Of japonese animation. Califórnia: Stone Bridge Press, 2014.
DURAND, G. Estruturas Antropológicas do Imaginário: introdução à arquetipologia geral. Tradução de Hélder Godinho. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
FERNANDES, R. F.; SANTILLI, A. C. Sakura Card Captors e os vínculos: narrativas de amor nos animes japoneses. Revista Comunnicare, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 70 – 89, 2017.
HARTZHEIM, B.H. Pretty Cure and the Magical Girl Media Mix. The Journal of Popular Culture, New Jersey, v. 49, n. 5, p. 1059 – 1085, 2016.
RUSSELL, N. R. Make-Up!: The Mythic Narrative and Transformation as a Mechanism for Personal and Spiritual Growth in Magical Girl (Mahō Shōjo) Anime. 2015. Tese (Mestre em Artes) – Department of Pacific and Asian Studies, University of Victoria, Victoria.