Diversos países escandinavos compartilham entre si mitos relacionados a um espírito da água metamórfico, responsável por mortes por afogamento (Ferreira, 2017). Nøkk, Nykr, Nix e Söetrold são alguns dos nomes que tal criatura recebeu em diferentes países nórdicos.
Ao desenvolver uma sequência para a animação “Frozen” (2013), um longa-metragem livremente adaptado do conto infantil “A Rainha da Neve” do autor dinamarquês Hans Christian Andersen, os artistas do Walt Disney Animation Studios decidiram tomar como inspiração mitos e histórias do folclore nórdico, ao invés de retornar à sua origem literária.
Para o produtor Peter Del Vecho e os diretores Chris Buck e Jennifer Lee, “Frozen” era ao mesmo tempo uma obra com raízes na mitologia e nos contos de fada: a heroína Elsa seria uma perfeita personagem mitológica por ser uma pessoa com poderes lidando com problemas em um mundo normal; sua irmã Anna, por sua vez, é uma perfeita personagem de conto de fadas por ser uma pessoa comum lidando com problemas relacionados a magia (apud Julius, 2019, p. 6). Essa dualidade de raízes da história faz com que seja compreensível que “Frozen 2” (2019), continuação da obra de 2013, fosse desenvolvida tendo como base narrativas da mitologia escandinava.
Um dos mitos que influenciaram a sequência foi justamente o do Nøkk nórdico, que deu origem a um cavalo de água mágico que surge durante o filme. Nomeado como Nokk (o nome nunca é citado na história, mas é referenciado em produtos de marketing da obra como brinquedos e livros), o personagem é uma atualização do mito do espírito da água nórdico, que ao mesmo tempo apresenta características similares à criatura mítica e também atualiza o imaginário do Nøkk.
A IMAGEM DO NØKK E DO CAVALO NA MITOLOGIA NÓRDICA
Durante seus estudos sobre as religiões e mitos de países setentrionais da Europa, Ferreira (2017) se volta para o estudo dos relatos do Nøkk ou Nykr, como a pesquisadora revência a criatura lendária considerada um espírito das águas. Embora as histórias sobre o Nykr sejam diversas, o “enredo sempre envolve três fatores fundamentais: corpos d’ água, atração sobrenatural e perigo” (Ferreira, 2017, p. 68). Segundo ela, trata-se de um ser metamórfico, que pode assumir formas humanas masculinas, de objetos e de animais, sendo a forma de cavalo uma das mais referenciadas durante o estudo.
Na Noruega, em uma das versões do mito, a criatura é conhecida como Nøkk e habitaria rios, lagos e fiordes. Como relata Ferreira, a pessoa que monta o Nøkk quando ele assume sua forma de cavalo seria levada à morte por afogamento, pois o animal dispararia em direção à água de forma que a vítima não pudesse escapar. Acreditava-se também que o “contato direto entre ele e a vítima resultaria na submissão desta àquele, isto é, a partir do momento que a vítima o tocasse ou o montasse, estaria sob seu domínio” (Ferreira, 2017, p. 78).
Crianças seriam as principais vítimas dessa criatura e a pesquisadora afirma que, comumente, o Nøkk atrairia pessoas chamando-as através de uma voz vazia e sobrenatural, algo que implica em um apelo da criatura sobre os sentidos humanos, afirma a pesquisadora.
Em uma versão sueca do mito descrita por Thorpe (1987, apud Ferreira, 2017), uma criatura chamada Näck costuma assumir a forma de um cavalo ou de um homem, jovem ou maduro, com a intenção de atrair donzelas belas ou esnobes. Nota-se aqui como o imaginário dessa criatura está relacionado a figuras masculinas, um elemento que se repetirá em outros relatos do mito.
O Strömkarl é outra variação dessa criatura citada por Thorpe que surge vezes como um homem tocando um violino, vezes como um cavalo e também chega a ser citado como um “Mermen”, um termo que pode ser traduzido como “sereio”. Segundo o autor, a aparição da criatura pode indicar a chegada de uma tempestade, mantendo uma relação com o Söetrold norueguês, uma criatura da água que surge geralmente em tempestades.
Não é incomum ver no imaginário ocidental o aparecimento de figuras masculinas que estão ao mesmo tempo ligadas a cavalos, à água e ao surgimento de tempestades. Ferreira (2017) cita que o deus nórdico Óðinn é um grande domador de cavalos, algo que reforça sua imagem masculina e bélica, que controla o vento e o mar e assim, pode também controlar tempestades. Na mitologia grega, o deus aquático Poseidon era considerado o progenitor de diversos cavalos lendários, como Pégasus e Árion, ao mesmo tempo em que tais animais comumente eram mostrados relacionados a rios, fontes e nascentes (Bradač, 2003).
Figuras masculinas da água e das tempestades também se mostram bastante presentes em obras midiáticas. Os livros da saga “A Canção de Fogo e Gelo” e o seriado televisivo “Game of Thrones” (2011 – 2019) citam a religião do Deus Afogado, uma divindade marinha que vive abaixo dos oceanos, poderia ressuscitar pessoas mortas por afogamento e protegeria seus discípulos, que viveriam para saquear os mares. Tal figura estaria em constante embate com o Deus da Tempestade, figura esta que seria responsável por enviar ventos e ondas capazes de derrubar navios.
No filme O Farol (2019), um jovem ajudante de faroleiro tem constantes visões que mostram seu companheiro como uma espécie de “sereio” com tentáculos de polvo e que o atormentam durante a história. Na narrativa, o faroleiro (uma figura masculina) ainda avisa o jovem que se ele matar uma gaivota, poderá fazer com que uma tempestade atinja o local onde eles se encontram, algo que realmente acaba por acontecer. Desse modo, a imagem de um ser masculino capaz de profetizar a chegada de tempestades marítimas é novamente referenciada.
Pode-se notar que, por estar relacionado a afogamentos e tempestades, o Nøkk é visto como uma figura indesejada e de características negativas na maioria dos relatos mitológicos. Ferreira (2017) cita que os mitos nórdicos sofreram forte influência cristã, um fato que pode ter levado a demonização da imagem do espírito da água. Muitos são os ritos citados para afastar a criatura e durante a lenda do Näck, a pesquisadora afirma que ele pode ser aprisionado por algum tipo de enlaçadura.
Entretanto, se considerarmos a imagem do cavalo na mitologia escandinava, nota-se que nem sempre ela está impregnada por aspectos negativos. O animal apresentava diversas funções práticas para a sociedade da Islândia, mas também possuía “conexões com o religioso, com superstições e com o sobrenatural” (Einarsdóttir, 2013, p. 5, tradução nossa). Os cavalos também foram vistos como animais capazes de transcender a realidade e a mortalidade, aponta Einarsdóttir.
Segundo a autora, os cavalos seriam capazes de atravessar diversos mundos, transcender barreiras de todos os elementos e por isso eram encarregados de levar os deuses a mundos diferentes dos quais eles habitavam. De fato, Einarsdóttir relata que pontes e cavalos eram os principais meios de conexão entre os diversos reinos dos mitos nórdicos.
As valquírias, os espíritos femininos responsáveis por levar os espíritos dos mortos em batalha ao salão de Óðinn, também realizaram sua atividade de travessia entre os reinos enquanto montavam cavalos, relata Einarsdóttir.
Desse modo, embora o mito do Nøkk apresente um cavalo dominado por características negativas, quando analisada de maneira ampla, a imagem deste animal na mitologia nórdica se mostra valorizada por diversos fatores que o colocam como uma espécie de ligação entre o homem e o sobrenatural. Tal característica do cavalo, bem como diversos elementos do mito do Nøkk, serão resgatados pelo longa-metragem de animação “Frozen 2”.
UM ESPÍRITO COLÉRICO
Durante os eventos de “Frozen 2”, um personagem chamado Nokk inspirado na criatura da mitologia escandinava surge ao longo da história inicialmente como um inimigo da protagonista Elsa. Descrito como o espírito da água que habita uma Floresta Encantada, o Nokk da animação é representado como um cavalo cujo corpo é composto totalmente por água.
Segundo Lee (2019), uma das ideias originais para o personagem era mostrá-lo como um espírito com a habilidade de mudar de forma tal qual o Nøkk nórdico, mas em certo ponto os diretores do longa-metragem decidiram dar a ele a forma única de um cavalo de água. Desse modo, a imagem do Nokk na animação ao mesmo tempo em que se aproxima de sua inspiração mitológica, uma vez que mantém a figura teriomórfica do cavalo, se afasta do Nøkk nórdico, pois não possui a habilidade de mudança de forma tal qual sua contraparte folclórica.
Na animação, o Nokk é referenciado logo no início da narrativa, através de uma sequência de flashback que descreve brevemente a Flores Encantada na qual vivem quatro espíritos que simbolizam os quatro elementos da natureza. A primeira aparição do personagem acontecerá em uma rápida sequência em que sua face surge em uma poça de água e assusta o boneco de neve Olaf e somente após a metade da narrativa o Nokk de fato aparecerá por completo ao se mostrar como o guardião do Mar Sombrio, local que rodeia Ahtohallan, um rio congelado que guarda as memórias dos habitantes da Floresta Encantada.
Na trama do longa-metragem, Elsa começa a ouvir o chamado de uma voz misteriosa guardada nas memórias de Ahtohallan. Após uma maldição cair sob o reino de Arendelle, ela decide seguir até a Floresta Mágica e buscar a origem da voz que pode guardar as respostas para o problema que acometeu o local. Seu caminho pela floresta a guia até o Mar Sombrio que rodeia Ahtohallan, onde ela acaba encontrando o Nokk, o feroz espírito da água que enfrenta a heroína e tenta afogá-la.
Nota-se neste momento dois elementos relacionados ao imaginário do Nøkk que são referenciados no filme: a atração da vítima do Nøkk por uma voz sobrenatural e a tentativa da referida criatura em matá-la por afogamento. Ao contrário dos mitos descritos pelos estudos de Ferreira (2017), a voz sobrenatural apresentada pelo filme não é originária do espírito da água e sim de uma força sobrenatural além da criatura (no caso, o rio Ahtohallan). Entretanto, os acontecimentos descritos pelos mitos nórdicos e apresentados pelo filme continuam sendo muito similares. Tal como o Nøkk que atraí suas vítimas ao seu encontro com sua voz misteriosa, a animação nos mostra uma voz também de caráter enigmático chamando Elsa, que aqui pode ser vista como uma representação das donzelas vítimas do Näck, sendo atraída para um local que a levará até o Nokk e talvez até mesmo para sua possível morte.
Elsa acaba por lutar com o Nokk no Mar Sombrio, em uma sequência na qual o espírito aquático surge furioso envolto de ondas incontroláveis e uma tempestade de raios. Sua raiva está ligada à tormenta tal como o Strömkarl está ligado à anunciação de tempestades, aproximando o Nokk de “Frozen 2” de um imaginário de criaturas aquáticas relacionadas a tal evento climático.
O Nokk é a imagem da “cólera do Oceano” citada por Bachelard (1998, p. 178) em seu estudo sobre a violência aquática. Trata-se de uma água que recebe todas as angústias, todas as fúrias psicológicas, adquire a força da tempestade e da ira dos oceanos, segundo o autor. A criatura em sua cólera capaz de causar tempestades, é a personificação desse imaginário.
Quando o homem encontra no oceano tempestuoso um correspondente de seu psicológico da fúria, ocorre uma “simpatia colérica” (Bachelard, 1998, p. 180), uma comunhão de violências. Em “Frozen 2” essa correspondência junto ao oceano colérico representado pelo Nokk ocorre com Elsa, que encara a criatura e o próprio oceano com toda a sua fúria durante sua busca por Ahtohallan.
Bachelard cita que um nadador é uma figura que busca vencer as ondas do mar com o movimento violento de seus braços. A heroína Elsa aqui enfrenta o Nokk e a maré do Mar Sombrio motivada pela angústia e a incerteza do futuro, fato que a leva a agir de forma violenta para atingir seus objetivos, tal como o nadador em frente ao oceano tempestuoso. Ela cria rédeas de gelo para controlar o espírito, o prende de maneira violenta, em uma atitude que remete à ideia da enlaçadura utilizada para aprisionar o Näck.
Entretanto, o objetivo de Elsa não é o aprisionamento do Nokk e sim acalmar o espírito, uma ação que leva a própria protagonista a acalmar sua cólera interna e por um fim à tempestade em que se encontra. Logo após esse embate, o mar se acalma e Elsa é levada pelo Nokk até Ahtohallan, local em que ela compreende seu lugar junto à natureza e encontra paz interior.
MASCULINO E FEMININO AQUÁTICO
Considerando os dois longa-metragens da série “Frozen”, nota-se como um feminino dotado de característica positivas está em constante embate com um masculino envolto de aspectos negativos. No primeiro filme, as protagonistas Elsa e Anna entram em embate com o medo simbolizado pela Duke de Weselton e com a ganância do vilão Hans.
Em “Frozen 2”, após encontrar Ahtohallan, Elsa descobre que seu próprio avô, o Rei Runeard, foi o responsável por enfurecer os espíritos da Flores Encantada após assassinar o líder dos Northuldra, um povo nativo da região mágica, e assim amaldiçoar tanto a floresta, quanto o reino de Arendelle. Ela então precisa encontrar uma forma de devolver a harmonia aos espíritos e consertar os erros de seu avô para que os Northuldra vivam em paz, o que configura um confronto entre os ideais masculinos (de Runeard) pautados na violência e os ideais femininos (de Elsa) pautados na compreensão e proteção das pessoas.
Tal forma de embate novamente surge no encontro entre o Nokk, um espírito da água relacionado ao masculino aquático, e Elsa, que simboliza aspectos da água feminina. Há dualidade na água, pois o imaginário relaciona o elemento tanto ao masculino quanto ao feminino. Enquanto masculino é bastante violento e tempestuoso, como já citado neste artigo, a água é feminina “devido a sua característica passiva e maleável, a plenitude que purifica o desejo. A força da água vem da persistência, é dadivosa e purifica através da bondade” (Garcia, 2007, p. 22).
Elsa é a personificação dessa água feminina: além de possuir poderes de gelo, ou seja, água congelada, ela é a personagem que busca purificar o desejo colérico dos espíritos. Ela acalma (purifica) os espíritos do fogo, do ar e o Nokk, o espírito da água que surge como imagem do masculino aquático. Também é graças a ela que sua irmã Anna consegue descobrir como tranquilizar os espíritos da terra e livrar tanto a Floresta Encantada, quanto Arendelle, de suas respectivas maldições.
Assim que liberta a Floresta Encantada de sua desgraça, Elsa assume o posto de 5º espírito da natureza, uma ponte entre os humanos e o mundo mágico. Ao final, ela surge ao lado do Nokk, que agora calmo e pacífico, permite que ela o congele para que ela cavalgue pela Floresta Encantada e Arendelle em suas costas, como as valquírias que atravessavam reinos montadas em cavalos que serviam de conexão entre os diversos mundos dos mitos nórdicos.
CONCLUSÃO
“Frozen 2” oferece uma representação do imaginário do Nøkk nórdico com detalhes bastantes fieis aos mitos que o originaram. Entretanto, a animação expande a representação da criatura e modifica o final trágico com o qual ela geralmente está associada: aqui nenhuma criança ou donzela morre afogada. Pelo contrário, a donzela (Elsa), representante de um feminino da água purificadora, é capaz de acamar a cólera do masculino aquático representado pelo Nokk, uma atitude que subverte o mito e o atualiza para uma mídia narrativa atual.
Por fim, o fato do Nokk permitir que Elsa cavalgue em suas costas e congele seu corpo revela uma harmonização entre o masculino e o feminino aquático, como um reflexo da harmonia interior encontrada por Elsa em sua jornada.
BIBLIOGRAFIA
BACHELARD, G. A Água e os Sonhos: Ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BRADAČ, M. M. Greek Mythological Horses and the World’s Boundary. Opuscula Archaeologica, Zagreb, vol. 27, 2003, p. 379 – 391.
BUCK, C.; DEL VECHO, P.; LEE, J. Foreword. In: JULIUS, J. The Art of Frozen 2. São Francisco: Chronicles Books, 2019, p. 6 – 7.
EINARSDÓTTIR, K. S. The Role of Horses in the Old Norse Sources: Transcending worlds, mortality, and reality. 2013. Dissertação (Mestrado em Estudos Medievais Islandeses) – Universidade da Islândia, Reykjavík.
FERREIRA, A. F. Nykr, o Espírito da Água Nórdico: Mitologia, folclore e arte. 2017. Dissertação (Mestrado em Ciências das Religiões) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religiões, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.
GARCIA, L. Água em três movimentos: sobre mitos, imaginário e o papel da mulher no manejo das águas. Gaia Scientia, João Pessoa, vol. 1, 2007, p. 17 – 23.
LEE, M. J. ‘Frozen 2’ Adding Elements and Creatures To Enchanted Forests and Dark Seas, 2019. Disponível em: https://geeksofdoom.com/2019/09/30/frozen-2-interview-elements-creatures. Acesso em: 08 de janeiro de 2020.
1 comentário
Muito bom. Muito interessante. Meu filho está apaixonado por Frozen e viemos parar aqui em busca de imagens.
Parabéns por seu artigo e obrigado por dispó-lo para leitura.