As amazonas foram guerreiras que ao longo dos anos se transformaram em mito. Nesse artigo, tratamos a imagem da amazona historicamente, e sobre a figura da amazona contemporânea.
A etimologia da palavra amazona, ou amazonas, significa privada de um seio, pois
uma vez que essas guerreiras, dizia-se, amputavam o seio direito para melhor manejar o arco […]. As amazonas eram filhas de Ares, o cruento deus da guerra, e da ninfa Harmonia. Fundaram, sob inspiração do pai e da deusa Ártemis, um reino belicoso, composto quase que exclusivamente por mulheres […] A deusa protetora das Amazonas era naturalmente Ártemis, a arqueira virgem, com quem as filhas do deus da guerra têm muito em comum, não só por seu desdém pelos homens, mas sobretudo por sua vocação de guerreiras e caçadoras. (Brandão, 1991, p. 58 – 59)
Percebe-se assim a ligação dessas mulheres com o combate e o fato de conviverem em uma sociedade matriarcal. No meio acadêmico, o mito[1] das amazonas, que apresenta origem grega, tem sido estudado tanto por proporcionar pesquisas em relação à representação de mulheres em combate, quanto por apresentar diferentes interpretações ao longo dos anos.
Entre essas interpretações, pode-se destacar à estudada por Oliveira (2014) que diz respeito ao imaginário da amazona evocado pelos europeus durante o desbravamento da América. O continente americano era visto pelo europeu como uma
terra de gigantes, canibais, cinocéfalos, e outras criaturas bestiais […] o ápice da selvageria. De todos esses mitos, imaginários e representações talvez nenhum tenha enfatizado de maneira tão emblemática a questão de alteridade e do oposto quanto o mito das mulheres guerreiras. Representavam o caos, a desordem, a antítese da sociedade. (Oliveira, 2014, p. 2)
O mito das mulheres guerreiras as quais Oliveira cita é o mito das amazonas, uma vez que
as mulheres indígenas eram representadas e muitas vezes confundidas com a figura da mulher guerreira (amazonas). Sempre de cabelos longos, nuas, com arco e flechas nas mãos e encantadoras, quase irresistíveis. Mas os relatos contidos nas cartas desde a América Central até as terras do Sul, mostram que era preciso tomar cuidado, porque […] essas mulheres representavam um perigo eminente. (Oliveira, 2014, p. 4)
A imagem das amazonas segundo os europeus no momento em que eles chegaram às América é diferente daquela dos mitos gregos, de modo que é um exemplo dessa transformação da imagem. Tal transformação do imaginário dessas mulheres guerreiras ocorre também nos dias atuais, e se encontra bastante modificada devido às incontáveis representações que foram realizadas do mito da amazona nos diferentes meios. Entre essas mídias, é possível citar os videogames, que são capazes de apresentar uma diversidade de personagens mulheres que podem ser classificadas como guerreiras amazonas e até mesmo atualizar tal figura dentro de narrativas complexas e capazes de proporcionar a participação de um jogador ativo em um ambiente digital.
Pode-se assim seguir com um estudo do arquétipo[2] da amazona dentro de um imaginário cultural contemporâneo como o do ano de 2017, a partir da avaliação crítica de uma imagem das amazonas nos videogames. Desta forma, se compreenderá a evolução dessa imagem a partir de um exemplar e modo como os signos do imaginário descritos por Durand (2012) em seus estudos se manifestam na imagem atual da guerreira amazona.
Para isto, se analisará tal imaginário a partir de uma personagem específica de um determinado jogo: a personagem Ellie da obra “The Last of Us” (2013). Entretanto, antes de prosseguir com o estudo da imagem da personagem, pode-se primeiramente fazer uma breve síntese da transformação das amazonas e da figura da mulher guerreira em outras mídias, a fim de demonstrar as modificações que pelas quais passaram tal mito e as influências que essas guerreiras trazem às amazonas presentes nos videogames tornando-as amazonas contemporâneas, podendo ao final estabelecer critérios para o estudo uma personagem dos jogos digitais.
A IMAGEM DA AMAZONA E SUA TRANSFORMAÇÃO NA MÍDIA
Um primeiro exemplar da transformação da imagem da amazona pode ser encontrado nas histórias em quadrinhos, pois uma personagem definida como uma amazona e que contribui para a modificação dos aspectos selvagens e perigosos presentes na interpretação da “amazona americana” é a Mulher-Maravilha, uma super-heroína das histórias em quadrinhos. Como cita Lepore (2014), a Mulher-Maravilha foi criada por William Mourton Marston como uma princesa amazona de uma ilha só de mulheres. Ela seria “uma resposta ao Super-Homem […] por essa razão que, na ‘Era Marston’, a Mulher-Maravilha era constantemente retratada desempenhando feitos equivalentes […] aos do Homem de Aço” (Cassimiro, 2014, p. 40). A Muher-Maravilha lutava, realizava atos considerados masculinos e não era vista como uma personagem selvagem ou perigosa em comparação com a ideia que se tinha da amazona americana. Ela era uma heroína e simbolizava as forças do bem.
Outras transformações da imagem das amazonas podem ser encontradas nos meios audiovisuais. Mainon e Ursini (2006) estudaram o arquétipo da amazona na televisão e no cinema, buscando expor expor como a amazona clássica se desenvolveu no tempo, tendo em vista as motivações e as influências políticas, temporais e ambientais de cada autor. As primeiras interpretações das mulheres guerreiras citadas pelos autores se mostram submissas ou bastante amorosas, enquanto em interpretações contemporâneas essas mulheres apresentam maior agressividade. Trata-se de algo que pode ser percebido no momento em que os autores citam Joana D’Arc, uma personagem histórica que evoca o arquétipo da amazona através dos filmes que se propõem a narrar sua trajetória.
Mainon e Ursini relatam que “La passion de Jeanne d’Arc”, de 1928, se foca primariamente em demonstrar as punições e sofrimentos afligidos sobre Joana, colocando-a como um mártir. O foco muda no filme “Joan of Arc” de 1948, onde sua bravura como comandante do exército é evidenciada, mas sem deixar de lado sua submissão quanto à religião. Já “Saint Joan” de 1957 coloca a personagem como uma revolucionária, cuja a imagem teria servido de auxílio para proporcionar o fim do feudalismo e diminuir o poder que a igreja possuía na época. Por fim “The Messenger” de 1999, traz uma imagem bem menos submissa de Joana, que se encontra mais ativa nas batalhas do que em suas representações anteriores.
O arquétipo da amazona é identificado por Mainon e Ursini em outras mulheres midiáticas, como as heroínas do anime “Sailor Moon” (1992) e a protagonista do filme “Tank Girl” (1995), com cada obra apresentando mulheres que se colocam no meio do campo de batalha e trazendo lições de independência e identidade feminina. Para a análise das personagens, Mainon e Ursini utilizaram como critérios nove elementos que uma personagem feminina pode apresentar para ser configurada como uma amazona. Esses critérios seriam:
- Ela consegue lutar de forma física e agressiva;
- Ela não é só a parceira de um homem;
- Ela participa de uma organização ou nação feminina;
- Ela apresenta apreço ou irmandade junto de outras mulheres;
- Ela vive ou faz parte de uma civilização perdida;
- Ela é independente e não precisa ser salva por um homem;
- Ela é homossexual, bissexual ou não expressa interesse por homens;
- Ela se veste como uma guerreira;
- Ela utiliza armas e equipamentos associados ao mito das amazonas.
É necessário deixar claro algumas questões referentes aos três últimos critérios de Maison e Ursini: primeiro, a mulher independente não necessariamente não pode ser salva por um homem, ela apenas tem a capacidade de se defender sozinha; a veste de guerreira pode ser tanto um armadura, quanto outro tipo de roupa especial para guerra, como um uniforme, por exemplo; embora o arco e flecha seja a arma mais conhecida de uma amazona, a personagem pode utilizar espadas e outras armas que sejam variações de armas clássicas, com o mesmo acontecendo com os equipamentos clássicos, onde uma moto que pode ser vista como a variação contemporânea do que seria o cavalo.
Destaca-se também que Mainon e Ursini consideram que uma personagem pode ser vista como uma mulher guerreira ao apresentar pelo menos duas ou três características das citadas em seus critérios. Para uma avaliação crítica do arquétipo da amazona nos videogames, pode-se atualizar esses parâmetros impostos por Mainon e Ursini, buscando agregar um número mais restrito de personagens e aproximar tais critérios ainda mais do mito da amazona descrito por Brandão (1991).
Para estreitar o foco da pesquisa, se utilizará como base para estudo personagens dos videogames que apresentem dois aspectos intrínsecos: primeiramente, a personagem deve ser jogável, ou seja, podendo ser ou não a protagonista, o jogo deve ao menos dar ao jogador a possibilidade de controlá-la em algum momento dentro de sua narrativa; o segundo aspecto diz respeito a capacidade da personagem em lutar de forma física, com ou sem armas. Alinhados a esses dois aspectos, as personagens estudadas ainda deverão apresentar pelo menos três dos seguintes critérios:
- Ela participa ou participou de uma organização ou nação formada majoritariamente por mulheres;
- Ela apresenta apreço ou irmandade junto de outras mulheres;
- Ela vive ou faz parte de uma civilização perdida;
- Ela é independente e não precisa ser salva por um homem;
- Ela é homossexual ou não possui um interesse romântico;
- Ela utiliza armas e equipamentos clássicos de uma guerreira.
Ao analisar o imaginário no meio dos videogames, Gasi (2011) propõe que é possível identificar a imagem de um mito em um jogo digital a partir de sua aura imaginária. Neste conceito, a imagem do mito pode ser identificada em uma obra sem que seja apresentada em sua literalidade. Ou seja, utilizando os parâmetros aqui dispostos e a ideia da aura imaginária, é possível compreender de que modo a personagem Ellie de “The Last of Us” se apresenta como uma versão contemporânea da imagem e do mito da amazona.
ELLIE E A AURA DE UMA AMAZONA
Em “The Last os Us” a personagem Ellie é uma jovem de apenas 14 anos que se encontra em um problemático mundo após um fungo ter infectado seres humanos a ponto de torná-los criaturas hostis cuja a intenção é apenas atacar outros humanos. Por um motivo desconhecido, Ellie é imune à doença causada pelo fungo, o que faz com que ela se junte a Joel, um homem amargurado, em uma viagem pelos Estados Unidos a fim de encontrar um grupo de cientistas que poderão criar uma cura a partir dos fatores genéticos de Ellie. Joel inicialmente hesita em deixar a garota lutar junto dele quando os dois são atacados por criaturas ou bandidos, mas logo se vê obrigado a dar uma chance para que Ellie o auxilie em superar os obstáculos no caminho dos dois.
Joel é o principal personagem do game, e por isso o jogador passa a maior parte do tempo controlando-o, mas pouco depois da metade do jogo, Ellie se torna uma personagem jogável. É neste momento em que Ellie demonstrará sua independência (1ª característica), conseguindo enfrentar bandidos e criaturas com suas próprias habilidades e assim assumindo uma das características necessárias para configurá-la como amazona dentro deste estudo. Ela demonstrada afeto romântico junto a uma garota chamada Riley (2ª característica) na prequel de “The Last of Us” intitulada “Left Behind” (2014), colocando a personagem como uma garota homossexual. Junto de Riley e de outras mulheres, como Marlene, a líder de um grupo revolucionário chamado Vagalumes, Ellie demonstra apreço e irmandade (3ª característica), se preocupando com o bem estar dessas personagens femininas e assumindo uma terceira característica que a coloca como amazona. Ellie também é vista empunhando o arco e flecha, armas associadas às amazonas (4ª característica).
Graças ao fato da sociedade humana se encontrar em um momento de total dispersão e por não mais apresentar controle sobre as diversas partes do mundo, esta sociedade pode ser considerada uma organização mítica e perdida, e com Ellie fazendo parte dela, a garota acaba por apresentar a 5ª característica de uma amazona. Outro detalhe é o fato de que, embora o jogo apresente um protagonista masculino, diversas personagens que envolvem a história são femininas e são apresentadas em posição de poder, como é o caso de Marlene, a líder dos Vagalumes. Como Ellie faz parte dos Vagalumes, e esta pode ser considerada uma entidade matriarcal graças à sua líder, ela pode ser incluída na categoria da amazona que faz parte de uma organização feminina, apresentando assim todas as 6 características de uma amazona expostas nesta pesquisa. Deste modo, embora não nomeada como amazona, Ellie está coberta pela aura da imagem mítica da amazona, quase como uma personificação do que seria uma amazona contemporânea.
O arco e flecha primeira arma que a personagem utiliza quando é controlada pelo jogador, sendo aplicada pela personagem para caçar um cervo. Com o arco e flecha são os principais itens citados no mito das amazonas, a sua utilização por Ellie já dá indícios de sua possível afirmação como tal tipo de mulher guerreira, ainda que esta afirmação do arquétipo não ocorra de modo explícito. Entre os outros equipamentos que ela tem a sua disposição se destacam um cavalo que ela usa como meio de transporte e uma faca aplicada para autodefesa.
Em determinado momento da história, Ellie é sequestrada por um grupo de bandidos canibais. A menina consegue se libertar e é perseguida pelo líder do grupo que demonstra estar fascinado pela garota. As intenções do bandido não ficam claras, de modo ser difícil dizer se suas pretensões eram a de fazer da menina sua refeição ou a de estuprá-la, entretanto, ao ser obrigada a confrontá-lo, Ellie acaba lutando contra ele e o matando para proteger seu corpo.
Ellie não foi criada para ser uma guerreira como ocorreu com as amazonas dos mitos, mas ela é obrigada a se tornar uma devido as circunstâncias de um mundo pautado na luta pela sobrevivência. O momento em que Ellie empunha o arco e a flecha é o momento em que ela assume sua postura como amazona, é o momento em que a chamada aura imaginária da amazona se coloca sobre a personagem. Para Durand (2012) a flecha é um signo uraniano perfeito, pois aponta para a cima e quando é atirada, atinge os céus, trazendo a ascensão. Para Ellie, essa ascensão trazida pela flecha é a sua elevação à categoria de amazona graças à aura imaginária que se sobrepõe sobre a personagem.
GUERREIRA DA ASCENSÃO
Ellie poderia ser inicialmente vista como uma personagem longe de apresentar similaridades com a imagem da amazona mitológica por não ser demonimada de modo algum como guerreira amazona durante a narrativa do jogo digital. Entretanto, ele apresenta cada um dos critérios aqui utilizados para definir a imagem de uma amazona. Isto demonstra a capacidade dos videogames em traduzir arquétipos de forma não literal, modificando-os e descontruindo-os ao mesmo tempo em que preserva traços de um imaginário mitológico.
A personagem ainda está ligada ao regime diurno por signos uranianos e de ascensão. O diurno é um regime de lutas, um regime do embate entre o bem e o mal. Ellie não foi criada para lutar, mas ao precisar fazer isso, ela entre em um embate contra personagens vistos como malignos, muitas vezes nictomórficos, como os infectados pelo fungo, e assim enfrenta suas próprias trevas.
As características selvagens e perigosas identificadas nas amazonas americanas são redefinidas nos videogames e na personagem de “The Last of Us”. Ellie está longe de ser uma personagem selvagem ou vista como perigosa, e mesmo lutando primariamente por sua sobrevivência, ela se preocupa com os demais personagens e busca proporcionar o bem-estar alheio, o que pode levá-la até mesmo a buscar se sacrificar por um bem maior, como mostrado no final do jogo digital.
[1] Considerando o conceito mito para Durand (2012), que define mito como um sistema de signos e arquétipos capaz de se expressar na forma de uma narrativa.
[2] Utilizando aqui o conceito de arquétipo para Bachelard exposto por Ferreira (2013), que diz que os arquétipos estão ligados às “reservas de entusiasmo”, ou seja, são séries de imagens vindas da base da cultura de uma sociedade e que estão em constante devir. Este conceito será resgatado por Durand em seus estudos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, J. S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. 3. Ed. Volume 1. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.
CASSIMIRO, E. C. Caracterização linguística de personagem de histórias em quadrinhos da Mulher-Maravilha por meio da abordagem baseada em córpus. 2014. 320 f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) – Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.
DURAND, G. As Estruturas Antropológicas do Imaginário: Introdução à arquetipologia geral. Tradução Hélder Godinho. 4ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
FERREIRA, A.E.A. Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos bachelardianos. Londrina: Eduel, 2013.
GASI, F. A Poética Imaginária do Videogame: As passagens e as traduções do imaginário e dos mitos gregos no processo de criação dos jogos digitais. 2011. 139 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) – Programa de Estudos em Comunicação e Semiótica, Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.
LEPORE, J. The Secret History of Wonder Woman. New York: Vintage Books, 2014.
MAINON, D.; URSINI, J. The Modern Amazons: Warrior women on screen. New Jersey: Limelight Editions, 2006.
OLIVEIRA, A. R. Imaginário e Iconografia: as amazonas representadas nas fontes imagéticas e literárias da Ibero-américa no século XVI. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL AMÉRICA PLATINA, 5., 2014, Dourados. Seminário… Dourados: SIAP, 2014.