O novo jogo da série God of War foi lançado em abril de 2018, exclusivo de PlayStation 4, e um dos aspectos que chama mais a atenção é a relação do protagonista Kratos e seu filho Atreus. Uma relação que dita o tom da aventura e dos temas abordados no game.
Não é à toa que Atreus é um personagem tão importante para o jogo, ao ponto do diretor Cory Barlog declarar que esse novo God of War não poderia existir sem a figura dele.
“Eu dei a ideia de Kratos ter um filho logo no começo [do desenvolvimento] e, pensando agora, todas as outras ideias pareciam orbitar em volta dessa premissa”, disse o desenvolvedor ao site Dailystar.
Com isso, fica claro o intuito de fazer a interação entre pai e filho a característica de destaque na aventura, sendo um elemento tanto da narrativa quanto da jogabilidade.
Para contextualizar um pouco, a trama de God of War mostra o Deus da Guerra e seu filho em uma jornada pra realizar o último desejo de Faye – esposa de Kratos e mãe de Atreus: levar as cinzas dela até o alto de uma montanha.
Só que logo nos primeiros minutos a gente saca que ambos são estranhos um do outro.

Sombras de filho e pai
Kratos, o típico brucutu violento que aprendemos a odiar nos jogos passados, foi um pai ausente e que só se refere ao filho de forma impessoal, chamando-o de “Garoto”. Já Atreus, uma criança com saúde frágil e pouca força física, constantemente responde com “sim, senhor”, como se Kratos não fosse seu pai, e sim seu comandante.
Assim, a relação entre Kratos e Atreus se caracteriza pelo embate entre essas figuras quase opostas. Segundo o filósofo Gilbert Durant, em seu livro As Estruturas antropológicas do Imaginário (1992), ela se enquadra no regime diurno dos estudos do imaginário, porque ambos estão em conflito.
Em diversos momentos também é mostrado a falta de intimidade entre eles. Kratos hesita, mais de uma vez, em confortar o filho nos momentos em que está vulnerável, como na cena em que Atreus mata um animal pela primeira vez e que vimos no vídeo de anúncio do game, em 2016.
Por isso é interessante analisar a relação do diurno entre pai Kratos e filho Atreus desenvolvida como uma construção de intimidade entre eles conforme o jogo progride e, consequentemente, ganhando traços de uma relação do regime noturno (oposto ao diurno) do também Gilbert Durant.
Mas antes, a gente precisa analisar a intimidade estudada por outro filósofo, Gaston Bachelard.
A intimidade de Bachelard aplicada em God of War
O filósofo francês Gaston Bachelard, no livro A Terra e os Devaneios do Repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade (1990), diz que a intimidade surge da curiosidade de olhar o interior das coisas e pessoas.
Em God of War, essa curiosidade é representada por Atreus, já que, pra ele, o pai é uma figura misteriosa, não só pela ausência dele em sua criação, mas pelo próprio Kratos esconder seu passado violento (que presenciamos nos jogos anteriores da série) e o fato dele ser um deus.
Assim, a aproximação forçada após a morte da mãe faz crescer no garoto uma curiosidade de conhecer melhor o pai. Ou pelo menos tentar.
As ações de Kratos fazem surgir em Atreus questionamentos e dúvidas. O filho pergunta se o pai já matou pessoas antes, por exemplo, ou por que ele fala que os deuses não são confiáveis.
As perguntas de Atreus são o que Barchelard chama de visão penetrante. “Ela [a visão] detecta a falha, a fenda, a fissura pela qual se pode violar o segredo das coisas ocultas” (Bachelard, 1990, p.7). A cada novo questionamento de Atreus, Kratos se mostra mais incomodado e resistente a essa intromissão penetrante do filho.

Kratos dando bronca
Barchelard também chama essa atitude de Atreus de uma curiosidade agressiva, etimologicamente inspetora. “É esta a curiosidade da criança que destrói seu brinquedo para ver o que há dentro” (Barchelard, 1990, p.8).
Nesse contexto, Kratos é o “brinquedo” que Atreus vai destruindo aos poucos para revelar uma intimidade cada vez maior com o pai. Inclusive, destruir é uma palavra bem apropriada, porque Barchelard também diz que buscar intimidade com alguém é um ato violento, já que a pessoas mostra as trevas interiores, os segredos profundos e características que não quer que outras pessoas vejam.
No caso de God of War, os segredos e trevas de Kratos são literalmente expostos quando ele o filho estão em Hellheim, o reino dos mortos da mitologia nórdica. Lá, as cenas de Kratos enfrentando Zeus, como visto em God of War III, aparecem como ilusões tanto para ele quanto para Atreus.
Nesse momento, o deus da guerra se mostra quase fragilizado e envergonhado pelo filho descobrir as falhas dele no passado.
A intimidade descrita por Barchelard vista na relação entre pai e filho em God of War se mostra, em si, um ato até mais violento do que todos os membros decepados e sangues jorrados que Kratos acumulou nos jogos anteriores da série.
Se antes God of War era sobre uma violência gratuita e grotesca, o novo game mostra uma violência psicológica e profunda para o desenvolvimento dos personagens, o que o torna mais complexo e atraente.
Kratos, que matou deuses e criaturas mitológicas sem pestanejar, parece agora ter medo, medo do que uma intimidade com o próprio filho possa mostrar o que ele próprio realmente é: um monstro.
A gente pode até entender a atitude dele com o filho, por causa do que aconteceu com a primeira família do deus Grego, morta por ele em um ataque cego de fúria. Só que agora não vemos Kratos com sentimento de vingança e ódio, mas sim de receio. Receio da intimidade.
Esse é um inimigo que ele não pode enfrentar de forma física e que vai rachando-o aos poucos, em cada viagem silenciosas e contemplativa de barco que os dois fazem.
Ao final do game, a imagem de Kratos tirando as ataduras nos braços (o contrário do que ele faz na primeira cena do jogo) e deixando expostas as cicatrizes do passado é um simbolismo do brinquedo totalmente quebrado de Bachelard.
Só depois disso que Kratos se dá o direito de ser íntimo de Atreus para finalmente chama-lo de “filho” e confortá-lo quando jogam as cinzas de Faye.

Vergonhas do passado
A partir daí, a relação de pai e filho, mesmo que ainda se caracterize predominantemente como do regime diurno de Gilbert Durand, agora contém traços de um relação do regime noturno, porque – como a jornalista Flavia Gasi aponta em sua tese Mapas do imaginário compartilhado na experiência do jogar: o videogame como agenciador de devaneios poéticos (2016), citando Gilbert Durant – a relação de Kratos e Atreus se torna uma “intimidade quente e digestiva”.
“Por ser marcada como uma dominante quente, digestiva, Durand agrega no regime noturno uma constelação de imagens que remetem ao íntimo, sempre pela eufemização” (Gasi, 2017, p.62).
Assim, Kratos e Atreus estarem na companhia um do outro não se torna mais uma obrigação forçada por uma situação. Ela passa a ser encarado como um querer mutuo, que foi construído a partir da intimidade conquistada por ambos.
Bibliografia
Gasi, Flavia. Mapas do imaginário compartilhado na experiência do jogar: o videogame como agenciador de devaneios poéticos. 2016. 310 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica);
Durand, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução a arquetipologia geral. 1992;
Barchelard, Gaston. A Terra e os Devaneios do Repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. 1990;