Um dos agentes da transformação de sociedades em distopias nas narrativas moderna e contemporânea é o controle da informação. Seja no regime totalitário de 1984 (George Orwell, 1949) ou na alienação hedonística de Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley, 1932), a subversão e ocultamento dos fatos é uma faceta determinante para a manutenção do status quo nestes futuros que aprendemos a temer. Tal ideia deriva de exemplos concretos da história mundial, como o Index da Igreja Católica, que listava os livros proibidos pela fé cristã, ou a censura a veículos midiáticos, artifício comum aos governos ditatoriais.
É de forma semelhante que uma falsa sensação de ordem e prosperidade é mantida na ficção de Mirror’s Edge (EA DICE, 2008). Em seu prólogo, o jogo descreve a transmutação de uma cidade “pulsante e perigosa, mas viva e maravilhosa”: trata-se de The City, uma metrópole tão sem nome quanto asséptica. Povoado por cidadãos sem voz[1] ou poder de decisão sobre seu meio, o centro urbano do game se situa em um futuro onde todas as instâncias de autoridade são subjugadas, às claras ou sob os panos, pela iniciativa privada.
As dualidades de Mirror’s Edge
Dentre as características da vida em The City, destacam-se o rígido controle e vigilância, encabeçados pela empresa fictícia Kruger Security, sobre seus habitantes. Aqueles que se opõem a tais medidas são marginalizados e punidos pela lei. Nesse contexto, emergem os Runners (“corredores”), mensageiros ilegais que percorrem os telhados em alta velocidade para mediar a comunicação entre membros de grupos revolucionários contrários ao regime vigente. A protagonista do game, Faith, é uma das acrobatas dessa resistência. Sua classe é perseguida pelo Icarus, projeto da mão dominante que visa extingui-la a qualquer custo, usando-se de quaisquer meios.
O gameplay de Mirror’s Edge coloca o jogador na perspectiva de primeira pessoa e o desafia a transpor obstáculos físicos com saltos, manobras e escaladas que bebem diretamente da fonte do parkour[2]. Nesse sentido, o jogo é permeado pela verticalidade de seu level design, que encontra seu paroxismo na morte de Faith quando esta despenca dos arranha-céus após um pulo malfadado.
Mirror’s Edge é, portanto, uma obra em que o constante embate entre forças opostas é perceptível tanto em sua narrativa quanto em seu espaço interativo: a dicotomia entre o movimento ascensional de Faith e a ominosa possibilidade da queda livre; O confronto entre a vigilante força mantenedora de uma anti-utopia e a insurgência que se comunica por meios esguios. Substantivos como “bem”, “mal”, “êxito” e “falha” são facilmente discerníveis nesse contexto.
Mirror’s Edge e o regime diurno de Gilbert Durand
Sob a ótica durandiana, o plano simbólico do recorte que fazemos aqui de nosso objeto de estudo se encaixa no regime diurno, denominado pelo autor como o “regime da antítese”[3]. Dentre as estruturas propostas pelo autor francês, interessar-nos-ão, especialmente, os símbolos catamórficos, ou seja, as imagens relacionadas à ideia de queda.
Para Durand, a catamorfia é um elemento inerente ao descenso rápido e forçoso. Se o nascimento humano representa nosso primeiro trauma, é porque este traz consigo a primeira experiência de medo, medo da queda. É o movimento vertiginoso que sepulta Ícaro e Faetonte na mitologia grega. É o abismo cristão que representa um “leitmotiv da punição apocalíptica”[4].
Consideraremos que a literalidade da protagonista se dilui e sua imagem se confunde com o que carrega consigo: Faith deixa de transmitir a informação — destrutiva ao modelo implementado em The City — para tornar-se sinônimo desta sob os olhares do antagonismo na trama. Para a Kruger Security, a morte de Faith representa o próprio fim do conhecimento indesejado.
Aqui, o aspecto catastrófico da queda que Durand aponta não enaltece tão somente o fracasso do jogador perante os obstáculos urbanos, mas também nos remete a uma perda de potência do receptor da mensagem perante a cidade ilusória, devoradora da informação em seus abismos profundos.
Por outro lado, o sentido ascensional das trajetórias bem-sucedidas de Faith remete simultaneamente a uma virtude moral e a um ganho de potência por meio da elevação física da personagem. Para Durand, a ascensão se opõe ao caráter degradante da queda e representa, em diversas religiões, a elevação espiritual: o Livro dos Mortos dos antigos egípcios fala de uma escada que permite àquele que a escala ver os deuses. A arquitetura de suas pirâmides, consagradas aos finados, cultuam o céu ao apontar seu cimo para o mesmo — simbolismo que o autor francês denominará montanha sagrada, amplamente explorado em outro jogo digital, Journey (thatgamecompany, 2012).
A impulsão de Faith, aliada a seus movimentos rápidos e cheios de fluidez, lembra-nos menos de um gracioso voo e mais de uma lânguida flecha que trespassa e rarefaz o caráter ilusório da cidade — materialização do antagonismo no jogo. Para o autor-referência a este texto, a flecha “une os símbolos da pureza aos da luz, a retidão e a instantaneidade vão sempre de par com a iluminação”.[5] Sobretudo, é especialmente feliz a comparação que Durand faz dessa imagem com a ideia de um “saber rápido”, afinal, o objetivo das corridas da protagonista de Mirror’s Edge é tornar conhecida em pouco tempo uma informação proibida.
Durand vai ainda nos recordar que o herói de seu regime diurno é um “guerreiro violento” e que a arma cortante que este empunha conta com um caráter de purificação. Em primeira vista, pode parecer que nosso próprio arcabouço teórico nos trai: afinal, como pode um game que incentiva o jogador a todo momento a evitar o combate, seja este corpo-a-corpo ou armado, ter em sua protagonista uma amazona? Aqui subjaz certa sutileza em Mirror’s Edge. Se Faith não empunha nenhuma arma, ela faz de si mesma a rápida lâmina que corta o plano urbano com suas acrobacias: ela é um elemento intruso ao dia-a-dia da cidade tal qual o fio metálico que perfura a carne impura. Indo além, se aos olhos da força antagônica a personagem principal e a informação que esta carrega consigo são uma só, é o conteúdo dessa mensagem que é imbuído do poder sublimador que pretende extinguir o cerceamento da liberdade em The City.
Nem tanto à margem do espelho
Se a velocidade de transmissão da informação em Mirror’s Edge nos remete à lâmina purificadora de Durand, poder-se-á buscar no mundo real correspondências a esta imagem. Durante os movimentos revolucionários de 2011 conhecidos como Primavera Árabe, muito se falou sobre o papel das mídias sociais durante esse processo — tanto como espaços de relatos à mídia internacional e de documentação acerca da situação de cada nação[6] quanto como um meio de grupos de ativistas se organizarem para protestar contra seus respectivos governos. Em milésimos de segundo e ao alcance de um clique, a informação pode percorrer distâncias inimagináveis para Faith em sua anti-utopia. Esse exemplo apenas reforça a ideia de que o imaginário pode ser facilmente palpável no âmbito da realidade, assim como a ficção retratada em um jogo digital pode nos remeter às agruras da contemporaneidade. Às vésperas da concretização da distopia, cabe a nós sermos agentes de uma indesejada iluminação.
[1] Em entrevista de 2009 ao Newsarama, a roteirista de Mirror’s Edge, Rhianna Pratchett, afirma que o game busca refletir sobre os motivos que levam cidadãos a abrirem mão de sua liberdade em troca de uma vida confortável.
[2] Modalidade esportiva criada na França por David Belle no início dos anos 1990 em que os praticantes transpõem obstáculos urbanos com acrobacias e reações rápidas.
[3] DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário, p.67. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
[4] DURAND, op. cit, p.114.
[5] DURAND, op. cit, p.135.
[6] KHAMIS, S. & VAUGHN K. Cyberactivism in the Egyptian Revolution: How Civic Engagement and Citizen Journalism Tilted the Balance. Arab Media & Society, v.13, Cairo.