A humanidade utilizou a imagem do engolimento por diversas vezes ao longo da história para narrar feitos heroicos e passar adiante valores em diferentes épocas. De Jonas a Pinóquio, nosso imaginário recontou a passagem do pequeno sendo absorvido pelo gigantesco, da travessia do comum para o misterioso, o íntimo.
Nos jogos digitais, um dos casos mais emblemáticos de engolimento é o de Rydia em Final Fantasy IV. Nascida na vila de invocadores de Mist, durante a infância ela testemunha a invasão de soldados do reino de Baron ao pacífico vilarejo, esta ação de extermínio em massa acaba por levar a vida sua mãe e demais moradores do local. Ao presenciar a tragédia, Rydia desperta seus poderes e, inconscientemente, invoca o Eidolon Titan, que através de sua força, abre uma gigantesca fenda na terra, separando seu antigo lar do vale no qual era localizado.
Rydia é salva por Cecil, um dos soldados responsáveis pela morte das pessoas que amava. Arrependido do mal que causou, Cecil decide proteger a criança, tornando-se assim um rebelde contra a causa de seu rei e seu novo braço direito, Golbez, que juntos desejavam extinguir os invocadores como possíveis forças opositoras contra a tomada dos cristais protegidos pelos demais reinos.
Durante a jornada dos heróis, novos aliados surgem, vítimas de tragédias semelhantes às perpetradas contra o povo de Rydia. O primeiro ponto em comum que une o grupo de resistência é o desejo de vingança contra o reino de Baron, pois todos carregam algum tipo de trauma em decorrência da violência cometida. No caso da jovem, apesar de possuir habilidades mágicas, ela teme seus poderes, pois, em sua visão, a magia é uma fonte de dor, uma ferramenta utilizada somente para destruir vidas, é uma força conflitante que deve ser combatida.
Em determinado ponto da história, o grupo enfim embarca num navio rumo ao reino de Baron. A viagem é marcada por uma forte tempestade e, repentinamente, o barco é surpreendido por Leviathan, fera aquática conhecida como “Senhor de Todas as Águas”. A criatura investe contra os heróis, causando a queda de Rydia ao mar para em seguida engoli-la, retornando às profundezas do oceano. Tal cena deixa o grupo rebelde em choque, pois todos creem que a garota foi morta. Contudo, este evento representa um ponto de virada para a personagem: a descida da jovem não se trata de um ponto final na sua existência, mas sim de uma ressignificação, de um renascimento.
Uma heroína do Noturno
De acordo com a classificação estabelecida por Gibert Durand, podemos identificar vários símbolos que o autor definiu como pertencentes ao Regime Noturno do imaginário no ato da queda de Rydia e em seu posterior engolimento. O primeiro destes elementos que podemos enxergar é o movimento de descida ao mar, pois, segundo o autor, toda descida é uma inversão dos signos solares. Descer é uma caminhada rumo à noite e seus mistérios, é o adentrar na intimidade em contrapartida à exterioridade.
A descida é um processo vagaroso, desprovido dos movimentos bruscos das chamas violentas do Diurno, na qual se penetra na noite fantasiosa lentamente, cada vez mais envolto em um calor suave, na temperatura de um corpo que um dia nos foi tão familiar.
Ao engolir a criança, Leviathan pretendia protegê-la dos perigos do mundo exterior e guiá-la nos meandros da magia, uma vez que Rydia era a última de seu povo, o derradeiro elo entre a humanidade e os Eidolons. A deglutição, neste caso, representa um retorno ao conforto do ventre materno, a calmaria de nosso primeiro lar, aos aromas, temperaturas e maciez que um dia sentimos dentro dos corpos de nossas mães e do qual um dia fomos abruptamente removidos.
A caverna e o reencontro
Após o longo declive nas profundezas das águas, Rydia e a criatura marinha adentram no submundo dos oceanos e passam por um novo processo de engolimento, quando ingressam na caverna que leva à morada dos Eidolons. Tal como uma boca, a caverna é uma cavidade que nos remete aos símbolos de intimidade, de descoberta, dos deleites do aconchego e dos prazeres sexuais, invertendo os valores tidos como negativos pela noite e a escuridão. Os temores da morte e outros males são substituídos pelo fascínio e a aceitação do devir; a passagem do tempo não é mais urgência a ser combatida, mas apreciada tranquilamente em nossos leitos apaziguadores. De acordo com as premissas do Regime Noturno estabelecido por Durand, ao percorrer os labirintos da própria noite, a figura do herói torna-se capaz de encontrar respostas para a conclusão de sua jornada, que possivelmente não seriam encontradas em seu movimento ascendente e de constante oposição aos desígnios do tempo.
No interior da formação rochosa esconde-se Freymarch, terra sagrada dos Eidolons, governada pelo rei Leviathan e sua esposa Asura. Com a chegada da criança humana neste fantástico lar de criaturas de grande poder e sabedoria, as intenções protetoras do soberano dos mares enfim são reveladas. Rydia é praticamente tomada como uma filha do casal e nesta terra desenvolverá suas habilidades mágicas, obtendo o entendimento sobre o este mundo oculto e sobre o ciclo das forças naturais e dos seres viventes.
A interiorização na caverna representa um reencontro com as primeiras lembranças familiares, uma retomada, pois dentro desta concha Rydia voltará a um tipo de lar primordial. Leviathan e Asura representam uma nova chance de vivenciar o sentimento de pertencimento familiar, um fragmento dos pais que se foram.
Outro elemento de intimidade ligado ao Regime Noturno é a valorização do feminino e de suas formas. Enquanto o Regime Diurno retrata certos pontos como símbolos temerários, como o órgão sexual e o sangue menstrual, aqui encontraremos as formas e o florescer do corpo e seus fluidos como sinais valorizados positivamente. Ao adentrarmos em nossa morada íntima, descobrimos pontos até então desconhecidos de nossa anatomia, percebemos a passagem do tempo e sua influência sobre a forma carnal, o desenvolvimento ou o desaparecimento de sensações e contornos. A faceta terrível da morte é eufemizada, aceitar-se a passagem do tempo na constatação das marcas no corpo.
O tempo em Freymarch não segue o mesmo ritmo do mundo exterior, por isso, o que para Cecil e seus companheiros não passou de um curto período, para Rydia foram longos anos longe de seus amigos, desde a queda do navio até o seu retorno à superfície. Ela desceu ao fundo do oceano na forma de uma criança repleta de temores e retornou como uma mulher ciente de suas potências. A magia, que antes simbolizava a morte, agora é uma força que a capacita a preservar a vida.
2 comentários
Na última sentença do segundo parágrafo [“Ao presenciar a tragédia, Rydia desperta seus poderes e, inconscientemente, invoca o Eidolon Titan, que através de sua força, abre uma gigantesca na terra, separando seu antigo lar do vale no qual era localizado.”], o que Eidolon Titan abre na terra de tão gigantesco? Um buraco ou um portal? Queria saber por que desconheço a história de Final Fantasy IV.
Olá, André!
Realmente, faltou uma palavra no texto. No trecho citado o correto é: “Ao presenciar a tragédia, Rydia desperta seus poderes e, inconscientemente, invoca o Eidolon Titan, que através de sua força, abre uma gigantesca fenda na terra”.
Texto atualizado. Muito obrigado!